Libertemos as crianças

By Alú Rochya - outubro 13, 2024

Liberemos a los niños

Uma alma que desce aqui, que encarna neste planeta, é uma entidade chegada de céus longínquos com um projeto de evolução de si mesma absolutamente original, com dons, talentos, tempos, desafios, possibilidades próprios.
 
Energia pura, a alma cai como um raio, toca a Terra e precisa, urgente, um tradutor cinético, alguém, algo que lhe permita expressar-se e trilhar os caminhos de sua jornada por estas bandas da galáxia, tão promissórias e paradisíacas como árduas, complexas, hostis.

A alma precisa de um corpus, um corpo, um boneco, um robô com flexibilidade de carne, orgânico, autônomo, com cara única, um rosto exclusivo de si mesmo.

É, então, quando um humano macho e uma humana fêmea oferecem sua comunhão para doar a essa alma um receptor, um corpo de características humanas. Nesse papel temporário, o homem assume sua tarefa de criador, autor, iniciador, pai. A mulher se fará leito, causa, origem, mãe.

Na hora marcada, a carne inaugurada no alumbramento e a alma se abraçarão na irrupção primeira com um grito-bebê, um alarido-neném, celebrando a bendita aparição neste plano, porém padecendo, desde o início, a certeza da desarmonia terrenal que vem pela frente. A vida é bela, sim, porém esse mundo é mesmo cruel. E essa alma, consagrada como filho, já sabe disso.

A palavra filho quer dizer originário (de), descendente (de). Um filho - e todos o somos - não é originário de algum lugar da Terra nem é descendente de certos pais ou avós. Ele é oriundo de uma estrela distante e descende dela. Muitas vezes, sequer tem laços cósmicos com os seus familiares terrenos.

Assim, quando chega um filho, não é uma coisa nossa, um pertence ou uma propriedade pessoal. Aquele que chega, antes que um filho nosso é um irmão nosso. Alguém vinculado a nós pelos fios da fraternidade universal.

Esse irmão chega pleno como entidade cósmica, mas, encarnado num corpo mínimo, inicia a caminhada diminuído em suas potências de realização. Concerne ao irmão-pai e à irmã-mãe protegê-lo e ajudá-lo em sua iniciação, a fim de que a sua parábola terrenal seja bem sucedida. Entendendo que a experiência particular desse ser faz parte de nosso próprio ensaio geral, de nosso projeto coletivo, do Plano Maior.

Nesse tempo, pai e mãe ensinarão a alma-filho como é esse negócio das possibilidades e limitações de andar ancorado a um corpo humano, interatuando  com outros congêneres. Paulatinamente irão lhe mostrando as regras gerais, mas sempre deverão ser respeitados sua índole, seu jeito, seu modo singular de estar no mundo, seus tempos e até suas próprias regras. 

Um ser a quem chamamos de filho é alguém semelhante a nós, porém absolutamente original em sua essência, um exemplar único. E assim deve ser enxergado, tratado, considerado e respeitado. Quando esse filho cresça, vire adulto, se torne independente, será um a mais de nós, outro homem, outra mulher. 
 
Nós não cuidamos de uma criança, pois ela é uma circunstância temporal; nós cuidamos de um adulto em tempo de desenvolvimento. É o fundamento -a base física, psíquica e espiritual- desse adulto de amanhã que estamos cuidando na criança de hoje, esse semelhante a nós, esse irmão nosso.

In'lakech. Com essa palavra, se cumprimentavam os maias quando se encontravam no caminho com algum indivíduo desconhecido. In'lakech quer dizer eu sou outro você. E esse "você" é outro eu. Alguém que, assim como eu, um belo dia desceu por estes arrabaldes da galaxia, um espírito libre, libre de tudo e libre de mim. Parecido a todos nós, mas idêntico a si mesmo.

Essa individualidade vem sendo vulnerada há muito tempo pelos pais, zelosos e corujas, fazendo as crianças de reféns. Seja por excesso de zelo, por apego, por superproteção, por egoísmo, por condicionamentos culturais ou religiosos, por carências pessoais, a miúde, pais e mães fazem de seus filhos algo assim como uma propriedade, da qual eles podem dispor como bem entenderem. Erro crasso.

Para ter a felicidade de um mundo diverso, colorido, nobre, amoroso, belo, é condição ineludível respeitar a sagrada identidade das crianças para que elas possam, já desde cedo, fazer seu original aporte à construção de uma sociedade nova, uma comunidade de irmãos.

Para isso, se faz necessário libertar as crianças. Deixar fazer, jogar, experimentar, arriscar, até mesmo se machucar nas brincadeiras. Estimulá-las a pensarem livremente, a sentirem em liberdade para elas poderem ir se descobrindo, se reconhecendo, se conhecendo, se encontrando com seu âmago, suas singulares visões de si próprias e do mundo.

É preciso soltar as meninas e os meninos para elas puderem navegar no fluxo da vida. É imprescindível abrir mão desse sentido de posse disfarçado de amor. Não é amor, não. Deixemos as crianças voarem e, simplesmente, vamos acompanhando elas na sua própria e irrepetível experiência. Sejamos facilitadores e colaboradores  incondicionais de seus próprios exercícios de busca e descoberta e não mais pais castradores e repressivos.

Lembremos sempre que esse ser, antes que um filho meu, é um filho da vida- como sou eu mesmo, como você é -, assim como nos ensinava o grande mestre Khalil Gibran, nesse belo e iluminador poema sobre os filhos:
         
Teus filhos não são teus filhos
eles são os filhos e as filhas 
da ânsia da vida por si mesma.

Vêm através de ti, mas não de ti
e embora estejam contigo
não te pertencem.

Podes dar-lhes o teu amor
mas não teus pensamentos
pois eles têm seus próprios pensamentos.

Podes abrigar-lhes o corpo
mas não sua alma 
pois sua alma mora na casa do amanhã
que tu não podes visitar nem mesmo em sonhos.

Podes esforçar-te para ser como eles
mas procura não fazê-los ser como tu
pois a vida não anda para atrás 
nem se demora no dia de ontem.

Tu és o arco do qual teus filhos 
como flechas vivas, são disparadas.

Deixa que tua inclinação 
na mão do arqueiro
seja para a alegria. 
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