O grande poder transformador

By Alú Rochya - dezembro 02, 2024

O eterno poder do samba

O samba é o pai do prazer, 
o samba é o filho da dor, 
o grande poder transformador.
                          - Caetano Veloso -                            
                         
O transe pelo qual está passando o planeta, a humanidade e demais espécies vivas tem, obvio, suas réplicas no Brasil. E por aqui também vai acabar com tudo aquilo do velho mundo que não seja genuíno, legítimo, autêntico, original. É a transição planetária, o fim dos tempos, o amanhecer de uma nova era, nos puxando para uma outra dimensão, outra vibração, mais elevada, mais digna, pedindo para nos livrar de tudo o que há de ruim em cada um de nós e acender nossa luz sanadora e liberadora. É o tempo da verdade, quando tudo será revelado. E tudo o que não for verdadeiro vai se desmanchar no ar. Como disse Elza Soares: fora tudo aquilo que não presta.

Entre as coisas que nos sobreviverão, sem dúvida, estará o samba. Essa genial criação brasileira morta tantas vezes e tantas vezes ressuscitada, pela simples razão de estar bem abrigada na alma do povo.

Se, como insiste em deixar constância Chico Buarque, o brasileiro é mesmo fruto da miscigenação entre o índio, o português e o negro ("eu sou uma mistura disso tudo", se orgulha Chico), foi o africano quem acabou dando o tom predominante da alma brasileira. Mundo afora, o Brasil é enxergado como um país de negros, seja para admirar ou, mesmo, para degradar. Não são as Xuxas nem as Giseles Bündchen as impressões digitais do país tropi, mas o DNA dos Pelé, Ronaldinho, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Machado de Assis, Mãe Menininha, Arthur Bispo do Rosário, Pixinguinha, Milton Santos, Zumbi dos Palmares, Ilê Aiyê, e por aí vai.

Língua, religião, culinária, literatura, arte, dança, esporte, comportamentos e, claro, a música, foram permeados, influenciados e determinados por aquele fluxo de energia astral que os africanos escravizados trouxeram nos navios negreiros. Isso era toda sua bagagem, mas tudo isso tinha um peso tão transcendente que acabou definindo os rasgos mais fortes da alma brazuca.

Nesses navios de carga, espremidos nos porões superlotados, homens, mulheres, crianças, velhos, cantavam o tempo todo, para espantar a morte, para mitigar a sorte. Os escravos vieram cantando para o Brasil e desceram na terra nova, cantando.

Saídos de diversas paisagens e tribos africanas, os cantos e as danças, festivos uns, religiosos outros, ritualísticos e alegres todos, foram se misturando. E foi a cavalo dessa música que, como nos cantou Caetano e nos contou Joaquim Nabuco, "a escravidão espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade, insuflando no país sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…”.

A mistura dessa musicalidade africana começou a ensaiar-se nas festas -muitas vezes clandestinas- onde o negro descontava a dilacerante experiência da escravidão cantando e dançando jubilosamente, no júbilo de estar vivo, de possuir uma voz, de afirmar-se na existência dizendo pro céu ainda estou aqui.

Assim foram nascendo as rodas de batucadas, derivadas em rodas de samba na Bahia, que sentaram uma base rítmica, que depois, no Estácio, em Rio de Janeiro, mestres iluminados acabaram de aprimorar para criar uma identidade plena.

A transformação do samba em música nacional não foi um acontecimento repentino, mas o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileira.

Assim, como escreveu Jorge Caldeira, aquele samba inscrito em seu projeto de trânsito pela sociedade, se converteu "no ritmo oficial da pátria, e como tal, passou a ter história. Só que uma história na qual o passado é refeito em função do presente". Transformação.

Tulio Ceci Villaça, estudioso e observador perspicaz da nossa musicalidade, tem escrito em seu blog Sobre a Canção o seguinte: "Lembrei de uma frase que Jackson do Pandeiro gostava de repetir: tudo é coco. E quando ele tinha de definir o coco, dizia: é samba. Pode parecer um reducionismo tremendo, mas o fato é que funcionava na prática… Para ele, baião, xaxado, xote, quadrilha, e diversos outros ritmos, todos, de maneira diferente, eram samba".

Jackson do Pandeiro (1929-1982) é um paraibano que começou tocando coco e forró. Mas quando chegou ao Rio de Janeiro, percebeu que as rádios, os produtores, o público pediam samba. "É samba que eles querem, todo mundo vai de samba, a pedida é sempre samba". A partir do samba, ele tocou e cantou ritmos de temperos diversos, mas sempre com gosto de samba.

E a pedida geral encontrou sua maior resposta via Rádio Nacional, que espalhou por todo o território a inconfundível batida do samba. Assim, a essência do samba acabou permeando ritmos, gingas, costumes, linguagens, cheiros, sabores, sentires e pensares. Hoje, você vai encontrar um Clube do Samba em qualquer estado do Brasil. 

Talvez essa música tão singular seja o maior legado do negro africano e sua descendência brasileira, que deram de presente para todo mundo usufruir. O regocijo por cantar e dançar samba é algo que vai além da cor da pele, além da carioquice, e até mesmo, de cantar e dançar. 

Trata-se de uma energia transcendente que está nascendo e renascendo o tempo todo, se reinventando sem pudor, exercendo esse seu grande poder transformador. Não apenas para os negros, mas para todo mundo, para todos nós que hoje transitamos pelos cantos, por vezes escuros, outras vezes luminosos desse sanatório geral em que virou a Terra, no fim dos tempos, onde e quando devemos encontrar as medicinas para a sanação de nossa alma

Por ser esse diamante verdadeiro, que sobreviverá por longo tempo, o samba pode ser um dos grandes remédios. E a vida vir a ser o mais perfeito carnaval. Axé. 

 

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